26/07/2012


           Jen Bliss

23/07/2012

E AGORA?
Isso não se faz, sabes? Aproveitares-te de um momento de distracção da minha parte, para me traíres implacavelmente. Tinha a boca entreaberta, é certo, mas porque estava a saborear com prazer um instante delicioso de uma brisa na pele. Logo te esgueiraste pelo espaço que te deixei disponível, saíste tão repentinamente, que nem tive tempo de te pressentir. Se tivesse podido adivinhar-te, com certeza que cerrava os lábios ou então disfarçava-te, mastigava-te até ficares irreconhecível. E agora, que sugeres que faça? Sabes que há poucas como tu: fortes, impregnadas de uma energia entontecedora, carregadas de uma emoção inigualável. Por isso, não posso desdizer-te. E agora, palavra? O que fazer?


22/07/2012

ESPERA
Espera, não vás ainda, espera um bocadinho, não te deixes arrastar já pela corrente desse rio que tens em ti. Deixa-me nadar, flutuar e velejar na água límpida e doce que te molha o olhar, quando me adivinhas prestes a chegar. Espera um bocadinho, não vás sozinho, acho que te quero acompanhar.

Almada Negreiros


21/07/2012


UM SONHO CHAMADO QUERER
Haja uma manhã de sol em cada olhar acordado
sempre que cedo demais o sono seja roubado
aos olhos cansados da noite mal sonhada.
Haja arranhões em joelhos de menino
calções rasgados e bolas perdidas no quintal do vizinho
terra na cara, lama nas mãos
e um sorriso aberto de chocolate roubado.
Haja espaço no jardim
um canteiro, pouco mais
segredos de amor para semear
serenidade para contemplar, primavera adentro
o germinar e o florir.
Haja música no ar
guitarras, violinos e pianos a vibrar
pássaros a chilrear
uma chuva inesperada de melodia
que em ruas e ruelas
procure as bocas secas e fechadas e lhes ensine a cantar.
Haja um momento parado
um silêncio nocturno premeditado
agarrado a um vazio desejado
preenchido por uma luz intensa e incendiária ou 
somente por uma ténue réstia de claridade.
Haja um poema libertado
[de nada serve um poema guardado]
palavras corajosas que arrastem para longe as horas amarguradas
e acalmem a fúria do corpo a tremer
repleto de vontade de dizer.
Haja sempre uma história para contar
um livro para escrever
filhos feitos com prazer
e colo para lhes dar.
Haja um cheiro de bolo acabado de fazer
um pesado aroma de canela quente que se esgueire
pela fresta da porta entreaberta 
e se enrosque na manta de lã colorida
inventando a lareira acesa e uma linda tarde de amor.
Haja saudade
o frio melancólico da ausência
a lâmina metálica de ir e ver partir
agasalhada pela promessa de chegar e ver regressar.
Haja paixão
um afago de cuidado
coragem para ousar e resistir
ousadia de viajar sem bússola nem mapa
haja uma panela a fumegar
um horizonte acabado de desenhar
um corpo a arder
cama por fazer
haja mar e haja calor
haja sombra para repousar
haja tudo aquilo que se deseja
hoje e amanhã
haja sempre um sonho, um simples querer.


20/07/2012

DEPOIS
Dói em mim
uma ousadia com cabelos de saudade
despenteados e húmidos
colados à pele
pelo sal
que da pele sai num rio de sorrisos e
de silêncio
ávido de um mar maior e ainda mais salgado
procurado num areal macio e morno
onde se escondem as mãos trémulas que enterram
tesouros de palavras murmuradas
e uma melodia sussurrada pelo fio de voz que resta
e que arrisca
rasgar as cortinas
e abrir a janela
depois do amor
antes da dor.

19/07/2012

TARDE
E a tarde teima em permanecer
enlaça-se no resto de sol pálido
segura-o bem junto ao peito
e sente-o ofegar e
gemer
sabe que tem de o soltar mas recusa-se a ceder.
Alguém lhe diga que o sol tem de partir e
dormir.



17/07/2012



LEVITAR

Fulgor
lateja no peito
incendeia
e o corpo levita
sem vertigem
sobe até ao limite
como puxado por corda sem nó
arrastado num movimento
vigoroso
imparável
depositado no regaço da
lua
redonda
e expectante. 






16/07/2012

SUBLIMAÇÃO
Temo que ela te ofereça resistência no início, mas não desesperes nem desistas. Acaricia-a primeiro, revolve-a delicadamente até sentires que se abandona, não há dureza que resista ao toque macio das tuas mãos. Quando a sentires leve e solta, quando a agarrares e a sentires desfazer-se entre os teus dedos, está pronta para ti. Escava com cuidado, com uma persistência suave, procura o centro que encontras no ponto exacto em que começas a sentir uma frescura húmida. É exactamente aí. Coloca-as uma por uma, devagar. Primeiro a paixão, depois o deslumbramento, junta a saudade e a expectativa e, por fim, o sonho e a desilusão. Já está. Tapa a cova com a terra que está à volta e rega-a com tudo o que tiveres de melhor - se chorares, será perfeito, sabes? Não precisas de ficar à espera, vai à tua vida e volta daqui a uns meses. Depois do sol de verão, depois do castanho do outono, depois da chuva de inverno. Na próxima primavera, volta. Estará à tua espera. Ainda um pequeno arbusto, talvez. Uma promessa de árvore.


15/07/2012


UM PEIXE SONHADOR
Era uma vez um peixe vermelho que vivia num grande e confortável aquário, com chão de pedras coloridas e imensas plantas exóticas. Era um peixe muito bem tratado e acarinhado, não lhe faltava água limpa, comida - estava até um pouco obeso - e palavras doces da menina sua dona. Tinha tudo para ser um peixe feliz, e era, mas não sempre. Havia momentos em que se aninhava o dia todo num canto do aquário, com as escamas baças e os olhos parados. Era especialmente nessas alturas que sonhava e desejava coisas que, em princípio, não são acessíveis a um peixe que vive num aquário. Naquele dia, sentiu que precisava de um desses momentos de retiro. Como sempre acontecia de manhã bem cedo, a menina alimentou-o, espalhando na água algumas migalhas de comida. Não lhe apeteceu nadar até à superfície para comer. A menina bateu levemente com o dedo no vidro do aquário. Não lhe apeteceu vir ao seu encontro, com a cauda a ondular alegremente, como habitual. Queria estar sozinho e ansiava a hora em que todos saíssem de casa, para ficar sossegado. E assim aconteceu, por volta das oito da manhã. Com o bater da porta da rua, sabia que tinha o dia todo por sua conta. Lembrou-se de uma história que em tempos tinha ouvido contar lá por casa, quando a miúda era mais pequena. Era sobre um peixe com asas e cara de pessoa, que voou até ao cimo de uma torre, onde o esperava uma linda princesa incrédula, a quem ofereceu um espelho. Sempre achou essa história magnífica e nos seus momentos de desconsolo, sonhava em ser o herói dessa aventura, o peixe vermelho destemido e apaixonado que voava até à sua amada. Tomado de uma coragem que não é característica dos peixes – muito menos dos peixes de aquário – decidiu mudar de vida e sentiu que aquele era o momento exacto para o fazer. Levou toda a manhã a trabalhar, arrastando as pequenas pedras coloridas que cobriam o chão do aquário, juntando-as com dificuldade num pequeno monte colorido, aquele que seria a sua mais preciosa ajuda na aventura que estava a começar. Quando tinha já a altura suficiente, nadou até ao cume do monte, apoiou-se solidamente na barbatana caudal, rodou um pouco para olhar em volta, um rápido olhar de despedida do seu pequeno mundo de água doce e plantas artificiais, voltou a rodar, apoiou-se melhor, inspirou profundamente e saltou do aquário. A viagem foi longa – assim lhe pareceu – tão longa, que teve tempo de ansiar pelos sinais das asas a nascer o dorso, tão longa que teve tempo de desesperar por não as sentir nascer, tão longa que teve tempo de perceber que elas nunca iriam aparecer. Caiu com estrondo no soalho de madeira. Arquejou durante uns instantes, lembrou-se da história encantada e da aventura que sonhou, das asas invisíveis que o fariam voar, deu um suspiro e um rápido esticão com a cauda, parou e morreu. Ao fim da tarde, abriu-se a porta de casa e a menina correu para ver o seu peixinho vermelho. O aquário estava vazio e, no chão, via-se um peixe acinzentado no meio de uma poça de água. Os peixes vermelhos não sonham e não voam – principalmente os peixes de aquário.

14/07/2012


SABERÁS
Sabes do amor
apenas a ínfima parte  
que dele inspiras
pequenas gotículas que sorves de um trago
e que nem ao centro de ti
conseguem chegar
porque o deserto do corpo só
logo as absorve com sofreguidão
voltando a sede
num arfar sofrido.
É preciso bebê-lo devagar
deixá-lo escorrer pela garganta
e escolher os cantos que quer saciar
os poros vazios que quer inundar.
E quando de dentro de ti
transborde pelos olhos
o lago em que o teu corpo se afogou
e quando te nascerem flores na ponta dos dedos
saberás
enfim
do amor
e dele poderás inspirar
a sua parte fundamental.

LenaCor

13/07/2012

VOLTAR
Sim, eu sei que vais ficar surpreendida. Mas há coisas que não se antecipam, não se avisam e não se explicam. Hoje era suposto estar calor, é verão. Mas olha lá para fora... céu cinzento, aves mudas, vento forte, árvores tristes, flores desbotadas e sol desaparecido. O mundo nem sempre obedece aos nossos desejos, por vezes parece estar do nosso lado, mas logo damos conta que afinal é indiferente a nós e avança de acordo com as suas próprias vontades. Tal e qual como a vida, que ora nos incita a vibrar intensamente, ora nos agarra e prende numa teia de marasmo. Assim são também o partir e o regressar. Imprevisíveis, inexplicáveis e inaceitáveis.
Volto quando me escreveres uma carta de amor.

12/07/2012


RESTOS
Tinha no corpo
os restos de uma pele que
não era sua.
Mergulhou no arrepio de
uma onda exaltada
e deixou-se lavar pelo frio salgado
de um mar zangado.
Quando respirar se tornou o
inevitável limite entre
viver e morrer
arrastou-se para a areia seca
e adormeceu ao sol.
Acordou e
já não havia azul
apenas um feixe de luz pálida
filho de uma lua recém-nascida.
Vestiu-se e caminhou
sem rumo e sem música nos passos
levando ainda no corpo cansado
os restos pesados e sobreviventes
de uma pele que
não era sua.


11/07/2012


AGARRAR AS CORES
Vi-o ao longe, braços esticados e mãos inquietas, tentando agarrar todas as cores à sua volta. Aproximei-me e disse-lhe olá. Deu pela minha chegada, ficou muito quieto, pousou em mim aqueles olhos grandes e pretos, de pestanas compridas e enroladas e, da boca de morango fechada, soltou-se de repente um sorriso grande e desdentado. Esticou-se para a frente e estendeu-me os braços. Agarrei-o com carinho, acariciei-lhe as costas mornas e derreti quando encostou a cabeça no meu ombro. Dei-lhe um beijo na bochecha quente e corada, afaguei-lhe os cabelos macios e passeei-o pelo corredor, para que bebesse com os olhos as cores que tanto queria agarrar. Voltamos ao ponto inicial passados alguns minutos. Devolvi-o aos braços da avó orgulhosa, plena de colo e palavras doces. Chama-se António, tem 10 meses – disse, adivinhando-me a pergunta. Respondi-lhe com as palavras que habitualmente se usa para descrever um bebé lindo e encantador. Soprei-lhe um beijo e disse-lhe adeus. Voltei aos meus afazeres, perseguida pelos vestígios da voz da avó, misturados com um deslumbramento que me arrepiava a pele – tem 10 meses e chama-se David.


10/07/2012

POR TUDO, UM TUDO QUASE NADA
Obrigada por me lembrares que a seguir à noite chega sempre a manhã, cinzenta ou ensolarada, tanto faz, desde que chegue vestida de recomeço. Obrigada por me lembrares que os livros continuam a existir, mesmo após a morte de quem os escreve; é infinitamente mais confortável saber que as palavras permanecem, mesmo que se rasgue o caderno onde foram escritas ou o vento as arraste para longe do instante em que foram ditas. Obrigada por me lembrares que as laranjas de verão têm pouco sumo e que de nada serve espremê-las com força, porque apenas se obtêm minúsculas gotas de um líquido sem sabor. Obrigada por me lembrares que voar é o maior sonho de todos, mas que pode ser também a melhor forma de nos perdermos de nós próprios. Obrigada por me lembrares que depois de cair resta apenas levantar a rir, sacudir devagar a poeira colada ao corpo e seguir caminho a cantar. Obrigada por me lembrares que as histórias nem sempre são encantadas, com fadas aladas e bosques verdejantes. Obrigada por me lembrares que o silêncio pode simultaneamente ser o nosso melhor amigo ou aquele que nos esquece, mal desaparecemos na esquina. Por tudo, um tudo quase nada, por nada que desejou ser tudo, mas nunca foi, porque o nada jamais será tudo... obrigada.