29/02/2012

EMPRESTAS-ME?
Empresta-me um lápis ágil
capaz de escrever à velocidade do desejo
capaz de contornar recordações
de evitar divagações e
de confundir inquietações.
Um lápis robusto
sem medo de constatações
ou de desilusões.
Empresta-me um lápis suave
que se abandone à maciez branca do papel
e não se esqueça da paixão, do mar e do mel.







27/02/2012

VOAR
Apeteceu-lhe voar... assim, sem mais nem menos, sem nada que o fizesse prever, deu-lhe uma vontade súbita e incontrolável de voar. 
Saiu para o jardim, encostou-se ao tronco do limoeiro, abriu muito os olhos para matar a sede de luar, despiu-se do dia e ofereceu-se à noite.
Fez-se leve e saltou. 
Finalmente, voou.


Nicoletta Ceccoli

26/02/2012

CHUVA
Hoje precisava que chovesse. Não uma qualquer tímida chuva, miudinha e insignificante. Precisava de uma chuva vigorosa, com pingas grossas e frias, acompanhada de rajadas de vento e de trovões assustadores... uma verdadeira chuva de inverno. Capaz de refrescar a terra, de acordar os eternos adormecidos e de fazer germinar os desejos. 

Samuel Ribeyron

23/02/2012

NOITE
Às vezes acordo durante a noite e a escuridão faz-me sentir que o dia se zangou comigo, amuou e nunca mais regressará. 
Fico de olhos muito abertos, mas não consigo ver nada. Atrás de mim, as cortinas agitam-se suavemente. Na estante, os livros tremem e escostam-se uns aos outros, como se tivessem frio. As almofadas ganham rosto e os bonecos ganham vida. E eu, fico inerte, quase não respiro, para não acordar o medo. 
Se, ao menos, conseguisse fugir daqui! Correr e procurar refúgio num colo quente... 
- Mamã... faz-me uma boneca macia para me defender... uma que se encoste a mim e me dê coragem...  de corpo fofinho e  flor no cabelo... mamã, faz-me uma boneca para me guardar o sono.



21/02/2012

CARNAVAL
Peguei na caixinha com tinta vermelha, molhei ligeiramente o dedo e disse-lhe para não se mexer. 
Ela acenou docemente com a cabeça e obedeceu. Suspirou profundamente e deixou-se ficar inerte. 
Desenhei-lhe na boca um coração vermelho. Senti no dedo o seu sorriso leve, tranquilo, quase agradecido. 
Há muito tempo que ninguém lhe tocava assim. 


Sonja Wimmer


18/02/2012

ESPERA
Não fosse o fato de banho vermelho, dir-se-ia que fazia parte do cenário... mais uma rocha sem forma, no meio de tantas outras. 
Há horas que não se mexia. Os olhos fechados, o corpo enrolado, a cabeça pousada. Apenas o cabelo traía a imobilidade, dançando o ritmo imposto pela ventania infernal.
Em baixo, o mar. Em cima, o céu. Ao longe, de novo o mar.
Não fosse o fato de banho vermelho, dir-se-ia que esperava.
Mas ninguém espera em cima de uma rocha... principalmente dentro de um fato de banho vermelho, numa manhã de ventania infernal.


Paola Zakimi

16/02/2012

NOITE
Um ruído abafado, um murmúrio interminável, quase um lamento anunciava a chegada da noite.
Juntou todas as palavras, as ditas, as escritas e as sentidas. 
Soltou-as ao vento.


Nicoletta Ceccoli

15/02/2012

BICICLETA
Tirou-a com custo do canto onde dormia há muito tempo. Estava coberta de pó e fuligem. Lavou-a e limpou-a. Deu-lhe brilho.
Subiu com cuidado, procurou os pedais, ensaiou um movimento suave e deixou-se deslizar.
Ainda era capaz. Estava tudo pronto.
Aconchegou-se e acenou alegremente ao vizinho.
Ela esperava-o.
Era tempo de partir.
A vida não espera para sempre.

Prastene Pohadky


14/02/2012

REGA-ME
Talvez não tenhas dado conta, mas é quase primavera.
Corta-me estes galhos secos, restos do frio que me queimou, já de nada servem, apenas me impedem de crescer. Corta as ervas daninhas, tira as pedras, revolve a terra à minha volta.
No final, rega-me. Com água fresca. Todos os dias.
Uma destas manhãs, verás que estou mais verde. 
Nesse dia, saberás que é primavera.  

Gustav Klimt

12/02/2012


ENTENDES?
- Entendes o que quero dizer?...
- Não.
- Quero dizer que pode haver uma grande diferença entre aquilo que vês e a forma que isso vai tomar quando estiver dentro de ti. Ou seja, tu tens a capacidade de moldar o que te entra pelos olhos dentro. Percebes agora?
- Mais ou menos... mas há coisas que são o que são, certo? Não mudam só porque olhas para elas!
- Mas são exatamente essas coisas que mudam! As coisas que observas e que levas contigo.
- Estou confuso... mas diz-me uma coisa: um ovo é e será sempre um ovo, certo?
- Depende...
- Depende de quê?!?
- Daquilo que o teu olhar oferece ao ovo e daquilo que o ovo te retribui. É esse fragmento que fica em ti... e com ele, farás o que quiseres.
- Agora é que não estou a perceber nada...

René Magritte

11/02/2012


FAZ-ME UM CHÁ
Dói-me a cabeça, tenho o corpo inerte e já nem sei de mim.
Está frio, a pele escalda e lá fora está sol.
Faz-me um chá.
Quente, por favor.
Junta-lhe um beijo, um afago suave
junta-lhe um segredo e uma pitada de canela.
Acrescenta uma gota de mel
e, no final, um pedaço de ti.
Depois
aconchega-me no colo
e deixa-me beber-te devagarinho.

Jessica Angiulli

10/02/2012


PRIMAVERA
Sentindo um cansaço imenso pelo interminável inverno gélido, decidiu sentar-se um pouco.
O banco vermelho adivinhou-lhe a vontade e arrastou-se até si.
Ela fez-se o mais flexível possível, ondulou o tronco seco e deixou-se escorregar suavemente.
Ele fez-se o mais macio possível e as suas traves desbotadas acolheram-na com ternura.
Ela sentia-se constrangida, envergonhada até - uma árvore não se senta, mantém-se erguida dia após dia, toda a vida.
Ele disse-lhe que tinha estado à espera dela durante todo o inverno.
Falaram de primavera. De chuva, sol e relva. De folhas e flores e de tinta vermelha.
De baloiços, crianças, piqueniques e beijos. 

Sarolta Bán

09/02/2012


NÃO TE PREOCUPES
Não te preocupes. Entre nós, não existe tempo.
Os dias acompanham-nos, lado a lado. As memórias misturam-se com os sonhos de futuro e, juntos, constroem um caminho de sorrisos e flores que vamos pisando alegremente.
Que importa se as tuas mãos são quase tão grandes como as minhas?
Que importa se as tuas palavras conseguem envergonhar as minhas?
Que importa se o teu horizonte está cada vez mais distante de mim?
O meu colo terá sempre o tamanho certo para ti e o teu cheiro será sempre doce e morno como no primeiro dia.
Não te preocupes. Eu não me preocupo. Entre nós, não existe tempo.

Wilhelm Lehmbruck

08/02/2012


ESPERA
Tinha nos olhos o cansaço da demora e a boca fechada por ter esquecido todas as palavras que sabia.
Debruçada no parapeito da janela entreaberta, esperou. O dia fez-se noite e a noite novamente dia.
Uma rajada de vento escancarou a janela. Passos apressados na rua.
Arranjou o cabelo, pintou de alegria os olhos cansados e ensaiou ao espelho uma única palavra. 
Saudade.
Amedeo Modigliani

07/02/2012


NAVE ESPACIAL
Pegou nos trastes velhos que tinha na arrecadação... serrou, partiu, colou, soldou, atou, limou, pintou... e acreditou. Já de madrugada, arrastou-a para o quintal. Olhou-a com carinho e orgulho. Meteu-se lá dentro, fez-se forte e corajoso e remou pelos céu. Via-a ao longe, brilhante e sorridente, com a sedução no olhar e a tranquilidade no sorriso. Disse baixinho – estou quase a chegar! – e, com a força que só  o sonho pode dar, remou até ela de um só fôlego, com a determinação de quem está certo que aquela seria a última noite de lua cheia.


06/02/2012

A TORRE
- Porque me trazes um espelho?
- Para te veres...
- A propósito, tu és quem, ou melhor, o quê?
- Sou quem tu quiseres ver.
- Pareces um peixe, mas tens cara de gente e asas nas   costas... és muito  estranho!
- Sou o reflexo do que desejas... tu gostas de peixes vermelhos... mas como poderia chegar até aqui, tão alto, sem asas para voar? E como poderia conversar contigo, se não tivesse olhos capazes de falar?
- E as maçãs?...
- São para ti, disseste que tinhas fome de vermelho e de doçura...
- Sim, é verdade. Obrigada.
- Não tens de agradecer. Eu só existo porque me inventaste.
- Voltas?...
- Se o desejares.... Basta vires até aqui, fechar os olhos e chamar-me.

ilustração _ nicoletta ceccoli






FLOR DE INVERNO
- Como te chamas?
- Porque queres saber?
- De tanto te olhar já te conheço bem, mas falta-me o nome, um nome para te chamar...

Ela fitou-o com um ar cúmplice. Ele lembrou-se do cheiro da relva molhada pela chuva.

- Podes chamar-me o que quiseres.
- Sim? Então vou chamar-te Flor de Inverno.
- Flor de Inverno... flor rara.. flor única... flor efémera?
- Não, simplesmente Flor de Inverno.


A ESCADA
Havia qualquer coisa de assustador naquela escada. Mesmo assim, decidiu experimentar. Estranha sensação... à medida que se subia, mais íngreme se tornava a descida. 
Ao longe, uma névoa...
Absolutamente indefeso quanto  ao que estaria por detrás da cortina de nevoeiro, continuou subindo (ou descendo?), ofegante pela antecipação da conquista do topo, amedrontado pela emoção da queda vertiginosa. 




05/02/2012


COMEÇAR


Com a janela entreaberta

faz-se de luz ténue e doçura

esta aventura do começar.