17/08/2012

TEMPESTADE IMPROVÁVEL
Existe para além da memória uma manhã de verão, acordada no sobressalto de uma tempestade improvável, filha indesejada de uma noite sem estrelas e de um vento oprimido e revoltado. Existe um corpo que se ergue da cama rangente e desliza suavemente pelo soalho de madeira escura, procurando com as mãos a porta que a luz insípida não deixa os olhos encontrar. Com os pés descalços na terra lamacenta, observo os olhares mudos de um rebanho encharcado que espreita por detrás do portão enferrujado e aí se detém, talvez contemplando como eu, os três limoeiros cansados [ontem vaidosos da existência inesperada no meio do laranjal], hoje vergados e dominados pelos grossos pingos de chuva, bofetadas de um só dedo, que lhes castigam os ramos e envergonham o orgulho verde. Vencidos pela exaustão, soltam os filhos maduros [os maiores e mais sumarentos limões], que rolam alegremente pela ladeira abaixo, ingenuamente convencidos que deslizam rumo à liberdade. Quando caem no chão, a pancada seca e abafada da queda mostra-lhes que a vida de um fruto maduro é curta e, então, mirram as sementes, encolhem a polpa e escondem a alma por detrás da grossa casca amarela. Um deles cai desamparadamente aos meus pés, desprotegido e ainda com os vestígios sujos da viagem colados à pele. Peguei nele e garanti-lhe protecção, segredando-lhe que, para mim, nunca será limonada.
Enquanto isso, a chuva aproveita todos os sulcos da terra e corre em jorro barulhento e apressado, na urgência de se juntar ao rio. Ao longe ouve-se um cão ladrar e, mais perto, os galos cantam a alvorada. Há um cinzento selvagem e viscoso que teima em permanecer. O céu desceu, está tão próximo que posso tocar as nuvens, se quiser... tal como fazem as copas das árvores, no topo da serra. 


Belmiro Ribeiro






2 comentários:

  1. Fixas o olhar do leitor em cada movimento, em cada plano, concedes-nos a possibilidade de visualizar cada pormenor,
    com a nitidez captada pela câmara e que as tuas palavras reproduzem.

    Pintura, fotografia, cinema: outros dos teus amores, certo?

    Bom fim de semana :)

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  2. Tua prosa é imagem nítida e saborosa que desliza pra dentro da alma límpida e perfeita, trazendo os aromas e sons que tuas palavras esculpem nos sentidos da gente. Ao mesmo tempo, abre uma perspectiva toda de sentimento por onde minha memória correu "aproveitando todos os sulcos" da minha alma e da minha história de vida.
    Lindo! Simples assim.
    Beijo, querida, vc me encantou... outra vez.

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