28/03/2012

NÓS
Desata-me.
Procura uma ponta solta
puxa devagarinho um fio de mim
sente o nó que se abandona nos teus dedos
e se desfaz suavemente.
Depois
desenrola-te de ti
e enrola-te em mim
ata-nos
com um só nó 
firme e muito apertado.




22/03/2012

BRISA
Um calor suave, doce e morno
afagou-lhe delicadamente a face.
Pareceu-lhe um suspiro.
Pareceu-lhe um beijo.
Mas o dia estava ventoso.
Talvez fosse somente uma brisa cansada, fugida da tempestade
à procura de um abrigo para repousar.
Nicoletta Ceccoli

20/03/2012

ENCONTRO
Avistaram-se ao longe e aproximaram-se rapidamente, com a pressa da saudade. Ele, caminhando com passos largos e seguros, ligeiramente arrastados. Ela, com passos leves e saltitantes, repletos de energia. Frente a frente, olharam-se longamente e sorriram.
- Finalmente!
- Sim, finalmente... já lá vai tanto tempo!
- Um ano... um longo e interminável ano.
- Estava com saudades tuas...
- Eu também.
- Estás bonito... mas talvez um pouco cansado, não?
- Sim, um pouco... e tu estás linda!
- Obrigada, preparei-me especialmente para este encontro.
Ele sentiu-lhe o perfume de flores e desejou provar o morango que ela trazia nos lábios. Ela sentiu-lhe o perfume de chuva e desejou perder-se no seu cabelo de neve.
- Tenho de ir...
- Não queria que fosses...
- Sabes que tem de ser... estão todos à minha espera, não os posso desiludir.
- Mas eles estão bem, garanto-te.
- Mas estão sós e rapidamente darão por isso. Entre a tua partida e a minha chegada só pode haver este instante, nada mais do que isso.
- Eu sei. Achas que nos poderemos encontrar algumas vezes?
- Acho que sim, gostava muito.
- Quando?
- Não sei, não depende de mim, nem de ti... talvez em abril, numa tarde chuvosa, ou numa noite de orvalho em junho.
- Ou numa manhã fria de maio...
- Sim... seria magnífico.
- Agora tens de ir, não é?
- Sim, tenho mesmo.
Abraçaram-se e, nesse instante, a noite fez-se dia e o dia acordou.
- Este ano também vais encontrar-te com ele?
- Sabes que sim.
- Gostava que fosses só minha...
- Mas sabes que não pode ser assim... tu e eu só existimos porque ele e todos os outros existem... cada um de nós só tem sentido porque é a parte que falta ao outro.
- Eu sei... onde acaba um, começa outro e esse outro, chegada a hora da partida, só vai quando um outro chegar.
- Pois, é assim mesmo.
- Eu sei, é assim mesmo e não se pode mudar.
- Adeus! Gosto muito de ti.
- Também gosto muito de ti, Primavera.

Caitlin Rigby


19/03/2012

AVENTURA
Contaste-me que uma voz autoritária te chamou. E que te sobressaltaste, entregue que estavas à tua angústia expectante. A voz autoritária pertencia a um corpo imponente, corpo esse que trazia nos braços algo envolto numa manta amarela que, estranhamente, te pareceu familiar. A voz autoritária e o corpo imponente aproximaram-se de ti e, num ápice, depositaram nos teus braços o embrulho amarelo. Contaste-me que sentiste uma série de coisas que não soubeste nomear na altura. Acho que continuas a não saber. A voz autoritária e o corpo  imponente afastaram-se e deixaram-te só, com um embrulho amarelo nos braços. Só então olhaste. Só então viste. E foi nessa altura que o arrepio se fez calor e o medo se fez tranquilidade. Não me disseste, mas tenho a certeza de que terás sorrido.


Sandra Bierman

18/03/2012

TUDO
De pouco ou quase nada serve desejar tudo porque
todo o desejo se evapora 
pela noite fora
e do desejo de tudo
fica pouco
ou quase nada.
Por isso,
esta noite não desejo
porque de pouco ou quase nada serve desejar tudo.


Tommy Ingberg

16/03/2012

NINGUÉM LHE DISSE
Se alguém lhe tivesse dito que o tempo é somente a distância entre dois instantes e que se torna curto ou longo consoante a recordação, a emoção e a expectativa de que é feita essa distância...
talvez percebesse que de nada serve andar às voltas,
desesperadamente à procura do tempo desejado.


Salvador Dali

15/03/2012

TEMPO DE ADORAR
- Há tanto tempo que não dizes que me adoras…
- Há quanto tempo?
- Há muito tempo, demasiado tempo.
- Mas não te disse há pouco, quando nos encontramos?
- Sim.
- Não passou assim tanto tempo… sei lá, uns quinze minutos no máximo, não?
- Sim.
- Então ainda te deves lembrar de que te adoro…
- Lembro-me das palavras, mas começo a ficar com frio.
- Tens razão… foi há muito tempo, demasiado tempo. Adoro-te.

Almada Negreiros

12/03/2012

LÓGICA
Preciso urgentemente de encontrar uma lógica para tudo isto. Saber em que sítio os acontecimentos se cruzam e se tocam, para depois os ordenar e com eles construir uma história que faça algum sentido, nem que seja só para mim.
Elvira voltava feliz para casa, depois de uma festa de carnaval. O carro despistou-se na auto-estrada...  continua à procura do caminho de volta, deitada numa cama de hospital.
Alberto e Luísa ansiavam por uma noite de calor. No tão esperado momento do encontro, a ponte que os unia ruiu e caíram ambos no rio que os separava... Alberto não encontrou Luísa, Luísa não encontrou Alberto.
Maria achava o mundo muito cinzento... decidiu recolori-lo, já pintou o céu, o mar e uma magnólia, mas ainda não sabe de que cores se faz a paixão.
Álvaro queria o afecto de Amélia, mas pediu-lhe dinheiro para cerveja... ela deu-lhe um olhar de desprezo e ele, sóbrio e inseguro, partiu-lhe a televisão.
Carlos passou o dia todo sem saber o que fazer com as mãos... acabou por escondê-las nos bolsos do casaco. À noite, as mãos estavam frias e carentes e os bolsos completamente rotos.
Leonor queria ser artista. Subiu para cima da mesa da sala de estar, esqueceu o mundo, cantou e dançou e, no final, agradeceu com uma vénia elegante os aplausos do seu cão espectador.
Cristina tinha dores de cabeça... para além disso, doíam-lhe as pernas e os braços, a barriga e as costas, os pés e as mãos... todos os dias, tomava dezenas de comprimidos para as dores. Nenhum deles era capaz de suavizar a angústia que lhe queimava o peito.
E eu, espectadora incrédula, continuo a precisar de encontrar uma lógica para tudo isto. Percebi isso hoje à tarde, quando olhava para o jardim... não chove, a terra está seca e nas árvores as flores nascem mortas.

Marjan Vafaeian

07/03/2012

RITUAL
Todas as noites, o mesmo ritual. Escovava os dentes, penteava-se, vestia o pijama, fazia uma festa no gato, deitava-se, apagava a luz e esperava por ele.
Todas as noites, a mesma sequência de gestos. Voltava a acender a luz, pegava no livro, lia duas páginas e voltava a fechá-lo. Levantava-se e ia à cozinha, bebia um chá, sossegava com um afago o gato sobressaltado, voltava a deitar-se, voltava a apagar a luz, voltava a esperar por ele. De olhos abertos, distraía-se tentando discriminar o contorno dos objectos na escuridão do quarto. Acalmava a ansiedade da demora, recordando a sensação de frescura com que acordava nas manhãs que concluíam as noites em que ele chegava cedo. Tentava esvaziar a cabeça de todos os pensamentos e murmurava em silêncio a melodia de todas as noites de espera. Por fim, sentava-se na cama, olhava o relógio, suspirava e convencia-se, definitivamente, de que ele não viria. Mais uma vez a tinha deixado à espera, mais uma vez não tinha aparecido.

 Pablo Picaso


Tirou da gaveta o minúsculo comprimido e engoliu-o sem água. Deitou-se e apagou a luz. Afundou a cabeça na almofada e fechou os olhos. Sentiu-o aproximar-se devagarinho.
O sono estava a chegar.

05/03/2012

PERSEGUIÇÃO
Disse-me que estava a ser perseguido. Perguntei-lhe por quem. Respondeu-me que era perseguido por toda a gente. Fingi que acreditava e perguntei-lhe o motivo de tal perseguição. Disse que não sabia. Questionei qual seria a finalidade de tudo aquilo. Respondeu que não havia qualquer finalidade, era apenas assim.
Deixei de ter perguntas para fazer. Adivinhou o meu vazio e disse-me, em tom tranquilizador, que nem todos os perseguidores eram uma ameaça. Perguntei-lhe como conseguia distinguir uns e outros. Respondeu-me que uns olhavam através de si e que outros olhavam para si. Ficou em silêncio, à espera da minha conclusão. Percebi a lógica, mas duvido sempre do óbvio.
Disse-lhe que ia pensar no assunto. 

Yuri Annenkov

04/03/2012


SEGREDO
Se eu te disser que hoje há primavera dentro de mim, por favor, não contes a ninguém. Sei que sabes do que falo. Sabes do vento que me despenteou o cabelo e do céu que me entrou no corpo. Sabes do sol que me aqueceu o olhar, dos passos incertos a ver o mar e das tuas mãos cheias de tudo para me dar. Sei que sabes do que falo, ambos sabemos. Mas, por favor, não contes a ninguém. 
Guarda este segredo no bolso seguro do teu casaco de inverno.

                                                                                                            Ada Breedveld

01/03/2012

ARTUR
Artur queria escrever.
Prestes a sufocar, necessitava urgentemente de se livrar de todas as palavras presas na garganta. Sentia falta do vazio deixado pelas palavras que são libertadas, do prazer de se poder ler a si próprio, como se de outro se tratasse.
Folheou e voltou a folhear o caderno de apontamentos, à procura de uma ideia, de uma palavra suficientemente forte para o arrancar daquela torturante passividade. Mas o caderno nada lhe disse e ele nem forças teve para protestar.
Apetecia-lhe escrever algo doce e, por isso, decidiu adoçar-se.
Foi à cozinha e decidiu comer morangos. Não os achando suficientemente doces, colocou-lhes açúcar… como nem assim encontrou a doçura de que precisava, cobriu-os com mel. Mas o travo amargo continuou e o silêncio permaneceu.
Saiu para a rua era já noite fechada e andou até de madrugada em busca das palavras doces de que precisava. 
Não sei se as encontrou. 
Já é de manhã, mas janela do seu quarto está fechada. 
Talvez esteja a dormir. Talvez esteja a chorar.
Talvez esteja a escrever.