31/08/2012

PÉTALAS
Às vezes falo
e não me consigo ouvir.
Mas sinto pétalas de flor a sair
da minha boca.
Acontece nos dias em que o pensamento me nasce no peito.



28/08/2012

SOMBRA E POEIRA
Se te arrastares pela sombra e poeira
rapidamente o sangue te vai arrefecer.
Não tardará que o reflexo de ti que vês
no espelho
seja tão fino quanto uma folha de papel.
A mesma com que farás
com afinco e tesoura afiada
os recortes exactos
para poderes rever-te
na fileira geométrica de figuras siamesas
a óbvia sequência de todos os que poderias
ter sido
não fosse a sombra e a poeira
a que te entregaste
sem sequer questionar.
 

21/08/2012

APENAS ISSO
De fogo e paixão se fazem os sonhos.
Mas às vezes
cansa-me tanto sonhar!
Preferia dormir.
Perder os sentidos num sono de tempo parado
corpo abandonado
suspenso num fio de energia
transparente
apenas um respirar profundo
existir a dormir, simplesmente
sem memória para evocar
sem sede de querer
sem futuro para adivinhar.
Uma cama de lençois brancos
uma almofada estéril
e um sono sem sonho.
Apenas isso e nada mais.



19/08/2012

FUGIU DE MIM
Fugiu de mim uma andorinha.
Sacudiu as asas e voou.
Não acenou
nem sequer para trás olhou.
Não lhe conheço o destino
mas imagino
que outras primaveras há-de procurar.
Sempre me disseste que foi o ninho do meu peito
que a chamou
e fez ficar.
E ficou. Mas o vento de verão tem hálito incendiário
e quando sopra decidido
deixa um rasto de chamas tão densas
que nenhum orvalho consegue extinguir.
Talvez seja por isso que ela decidiu partir.
Antes que cada erva macia do ninho se fizesse espinho
e com delicado prazer
se espetasse na sua carne a estremecer
a ave frágil da primavera
desfez o ninho seco e moribundo e
sem acordar o peito onde tantas noites dormiu
sacudiu as asas e fugiu.





18/08/2012

SILÊNCIO
Calem-se as mãos porque hoje não quero escrever.
Mora em mim um silêncio que quero preservar.
Longe de palavras  
murmúrios
ou do mais ténue sussurrar.
Livre da tinta negra que a brancura do papel gosta de violar.
Calem-se as mãos.
Deixem-me apenas ouvir o mar.

aurelique.tumblr.com



17/08/2012

TEMPESTADE IMPROVÁVEL
Existe para além da memória uma manhã de verão, acordada no sobressalto de uma tempestade improvável, filha indesejada de uma noite sem estrelas e de um vento oprimido e revoltado. Existe um corpo que se ergue da cama rangente e desliza suavemente pelo soalho de madeira escura, procurando com as mãos a porta que a luz insípida não deixa os olhos encontrar. Com os pés descalços na terra lamacenta, observo os olhares mudos de um rebanho encharcado que espreita por detrás do portão enferrujado e aí se detém, talvez contemplando como eu, os três limoeiros cansados [ontem vaidosos da existência inesperada no meio do laranjal], hoje vergados e dominados pelos grossos pingos de chuva, bofetadas de um só dedo, que lhes castigam os ramos e envergonham o orgulho verde. Vencidos pela exaustão, soltam os filhos maduros [os maiores e mais sumarentos limões], que rolam alegremente pela ladeira abaixo, ingenuamente convencidos que deslizam rumo à liberdade. Quando caem no chão, a pancada seca e abafada da queda mostra-lhes que a vida de um fruto maduro é curta e, então, mirram as sementes, encolhem a polpa e escondem a alma por detrás da grossa casca amarela. Um deles cai desamparadamente aos meus pés, desprotegido e ainda com os vestígios sujos da viagem colados à pele. Peguei nele e garanti-lhe protecção, segredando-lhe que, para mim, nunca será limonada.
Enquanto isso, a chuva aproveita todos os sulcos da terra e corre em jorro barulhento e apressado, na urgência de se juntar ao rio. Ao longe ouve-se um cão ladrar e, mais perto, os galos cantam a alvorada. Há um cinzento selvagem e viscoso que teima em permanecer. O céu desceu, está tão próximo que posso tocar as nuvens, se quiser... tal como fazem as copas das árvores, no topo da serra. 


Belmiro Ribeiro






09/08/2012

BREVE CANÇÃO DO ADEUS                                                       
Na noite de te ver partir
não esperes por mim no cais
vou dormir  sonhar
algo mais
talvez cantarolar
lágrimas e notas musicais
enquanto roubo estrelas do céu
e as costuro num macio e suave véu
que há-de aconchegar a pele
e aquecer a voz molhada
a mesma voz cansada com que te diria 
adeus
se na noite de te ver partir
a saudade me levasse ao cais
e ali ficasse até
não te ver mais.




08/08/2012


Espreita de ti um doce poema de amor.
Observo-te. E vejo letras a
escorrer-te dos olhos.
O rosto encharcado de palavras choradas.
E o peito aberto e inquieto
pedaço de carne ofegante
folha de papel
expectante.




07/08/2012


ALQUIMIA
Maria
que fantasia!
Alquimia?
Procurar alegria
no fundo dessa panela de latão
a que chamas caldeirão?
[e a que te entregas inteira, sussurrando paixão]
Alquimia... que agonia!
O anis não faz feliz
e a canela é só um sabor
nada sabe de ardor ou de amor.
E que farás se o mel endurecer
e nenhum calor for capaz de o derreter?
Pois, alquimia.
Já sabia.
É como magia
agarrar num abraço os ingredientes especiais
soprar-lhes um segredo
para completar o enredo
depois apenas esperar
cantando e cuidando
que todos se envolvam
numa dança fumegante
e finalmente
o instante.
Um orvalho morno aninha-se na pele.
Está pronta a tua magia, Maria.
Que euforia
esta alquimia
mas para mim
não passa de fantasia.
Escorrem-te agora dos dedos densas gotas prateadas
espera
não limpes ainda
deixa-me provar
não custa tentar acreditar
que no fundo do caldeirão
nascem gotas de emoção.
É doce, Maria
esta alquimia
e eu que pensava que era só fantasia.
Que ironia
fizeste magia, Maria
porque sabe a riso e a luar
sabe a lareira e a mar
sabe a todos os instantes que não ousei sonhar.
E o anis faz-me feliz
e a canela é mais do que sabor
arde-me no peito como o amor.
Alquimia, Maria
tinhas razão.
Derrama-me no teu caldeirão
quero derreter-me e
envolver-me com teus ingredientes essenciais
ser cúmplice dos teus segredos especiais
e ver-te à espera
cantando e cuidando
que me evapore em orvalho doce
deixando no fundo do caldeirão
[muito mais do que paixão]
a minha vida líquida
num misterioso elixir
de existir.


04/08/2012


Com a mão trémula
e o peito esquecido da emoção
o homem mudo
[o mesmo que se sobressalta com as mais simples palavras de amor]
agarra no papel e escreve

é na noite do teu olhar
que procuro o céu que é só meu
e sempre que nele vou voar
a lua recebe-me com ternura
e devolve-me
a imagem do homem que me esqueci de ser


Com a mão enfim sossegada
e o peito relembrado da emoção
o homem mudo
[continuando mudo]
dobra meticulosamente a folha de papel
acaricia-a com um toque de paixão
beija-a demoradamente
e deposita-a com carinho
no primeiro caixote de lixo 
que lhe aparece à frente.


Perfilam-se ordenadamente, assumindo um todo de perfeita forma triangular, em cujo vértice se arrumam os corpos secos e moribundos dos mais velhos. Num cortejo fúnebre silencioso, avançam  sem movimento com as cabeças pendentes e choram para dentro a saudade antecipada dos que partem para sempre. Num gesto de amor disfarçado de despedida, apanham com as folhas verdes a sua parte da última luz solar e sopram-na com carinho para os velhos e secos girassóis que acabam de tombar por terra. Ficam inertes, adormecidos na multidão, ondulando com a ténue brisa de verão. Amanhã voltarão a erguer-se com o primeiro raio de sol matinal. Um dia, serão eles o vértice da perfeita forma triangular, serão eles os moribundos chorados no cortejo fúnebre do entardecer.