02/05/2012

A LOJA
Quando às nove horas da manhã D. Florinda entrou, soube que o estava a fazer pela última vez. Como sempre, deixou a porta entreaberta, abriu o estore, regou as plantas, sacudiu o pó na secretaria e pôs a tocar Chopin. Por fim, sentou-se na cadeira, provocando o habitual gemido da madeira antiga. Pegou na caneta e começou a escrever. De vez em quando, espreitava pela janela, com um olhar que rapidamente se cansava da paisagem e logo fugia para o aconchego da pequena loja. Assim passava toda a manhã. Ao meio-dia, saía para almoçar, entrava na confeitaria da avenida, sentava-se na mesa do canto e, passados alguns instantes, a empregada trazia-lhe, com um sorriso doce, o almoço de todos os dias - uma torrada e chá de camomila. Comia devagar, folheando distraidamente o jornal. Quando terminava, deixava o dinheiro em cima da mesa e saía, despedindo-se da empregada doce e do patrão carrancudo com um ligeiro aceno de cabeça. O tempo de pausa que sobrava aproveitava-o para passear pela rua, quando o tempo estava bom. Se chovia ou o frio era insuportável, metia-se numa livraria e lia.  Às duas da tarde, pontualmente, voltava para a loja, de novo deixava a porta entreaberta e abria o estore. Habitualmente, este período do dia era destinado a organizar as estantes. Eram apenas duas, encostadas à parede, lado a lado, feitas de madeira escura. Todos os dias D. Florinda executava o mesmo ritual, com empenho e genuína satisfação. Tirava-as cuidadosamente das estantes e colocava-as em cima da secretaria. Limpava o pó, retocava as etiquetas de cada prateleira e voltava a coloca-las no sítio. A organização era cuidadosa, quase obsessiva. Na estante da esquerda, mulheres; na estante da direita, homens. Tanto numa como noutra, a mesma sequência nas quatro prateleiras, de cima para baixo – deslumbramento, paixão, saudade e ruptura. Quando pegou na última para arrumar, aproximou-a do nariz e sentiu o cheiro de papel velho misturado com um longínquo e quase irreconhecível aroma de pétalas de rosa. Colocou-a no respectivo lugar, encheu o peito com um suspiro profundo e foi sentar-se na velha cadeira de madeira. Habitualmente, voltava a pegar na caneta e recomeçava escrever. Mas naquele dia, a partir daquele momento, tudo seria diferente. Colocou em cima da secretaria o embrulho que tinha deixado no chão; cortou o fio e desdobrou o papel grosso. Pegou na placa e ficou a olhar para ela, observando cada letra, juntando uma por uma até chegar à palavra que lhe fez lembrar que aquele não era um dia como outro qualquer. Ao longo de vinte anos, D. Florinda foi proprietária de uma pequena loja, um espaço exíguo, pouco maior do que um quarto, onde acanhadamente cabiam apenas uma secretária, uma cadeira, duas estantes e alguns vasos com plantas. Era uma loja de papeis e envelopes, de várias cores e texturas. Era uma loja de cartas de amor.
Durante muitos anos, D. Florinda escrevia-as por encomenda, personalizando-as com todos os detalhes que o cliente pedia, descrevendo amores arrebatados, desejos ardentes, saudades guardadas, dores dilacerantes ou desilusões insuportáveis. Nos últimos tempos, é verdade que já não tinha clientes; excepto o Sr. Luís, que mora perto do mercado... desde que a mulher morreu, todos os sábados de manhã, bem cedinho, passa pela loja, pede uma carta de saudade, escrita em papel com cheiro a lavanda e vai ao cemitério, deixa-la no túmulo da sua amada; como nunca vê a carta que deixou na semana anterior, a ingenuidade dos seus 87 anos fá-lo acreditar que a falecida a vem buscar e a leva consigo para o seu mundo silencioso - claro que a D. Florinda, todos os sábados, à  hora de almoço, vai sorrateiramente ao cemitério retirar a dita carta pousada com saudade em cima do jazigo e a leva consigo. Quando o negócio começou a abrandar, D. Florinda não desistiu e todos os dias abria a loja, seguindo o mesmo ritual de arrumação e organização; no resto do tempo, ia escrevendo cartas de amor, umas atrás das outras, que depois arrumava cuidadosamente no sítio correcto, consoante o seu conteúdo.
Eram seis da tarde quando D. Florinda se levantou da velha cadeira de madeira, deu uma vista de olhos a cada prateleira, pegou na carteira, fechou o estore, apagou a luz, saiu, fechou a porta à chave e pendurou no puxador a placa branca, com letras pretas: vende-se.
Afastou-se em passo ligeiro, sem nunca olhar para trás. 

Emile Levy

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