24/05/2012

ESVAZIAR
Nunca soube identificar com exactidão o momento em que decidiu que queria esvaziar. De igual modo, nunca conseguiu descobrir o real motivo de tal decisão. Mas era uma ideia insistente, essa do esvaziamento. Por isso, desde muito cedo se debatia com formas ardilosas, algumas até bizarras, de ficar vazio. No início, não foi difícil. Começou por diariamente ir despindo as inúmeras camadas que, a partir de certa altura, deixaram de lhe fazer falta: futilidades, conversas estéreis, discussões infrutíferas, teorias inúteis, conhecimentos acessórios, atitudes de conveniência e um sem fim de detalhes completamente banais. Passados alguns anos, um olhar atento perceberia facilmente que o seu exterior se encontrava já bem mais liso, tornara-se um homem mais leve e muito menos opaco, mas apenas ligeiramente mais vazio. Decidiu então iniciar uma nova fase, esta bastante mais difícil, a de desbastar continuamente as suas sucessivas camadas internas, até as extinguir por completo. Encontrando uma ponta solta daquilo que achou ser o novelo da sua existência, aproveitou-a e foi puxando cuidadosamente o fio, retirando de si decepções, angústias, solidões inconfessáveis, esperas entediantes, conquistas que não ousou, medos paralisantes e todas as outras nódoas negras que tinha dentro de si. Sentindo-se, ainda assim, demasiado pesado e cheio, virou-se do avesso e sacudiu com vigor todas os restos em decomposição e todas as poeiras da vida. Assim passou mais um longo tempo, trabalhando neste processo, dia após dia, com o afinco de quem acaba de descobrir a sua real vocação. À medida que os dias iam passando, o seu interior ia ficando cada vez mais macio e maleável. Todas as manhãs se olhava no espelho e avaliava a perfeição do seu trabalho: um contorno cada vez mais fino e ténue, uma pele transparente e, principalmente, o olhar progressivamente mais baço, que lhe devolvia a certeza de que tudo estava a ser feito como previsto,  como tinha de ser. Estava cada vez mais vazio e esse sempre fora o objectivo. Tratou de se desfazer rapidamente de tudo o que lhe pertencia, deixou o trabalho, desligou o telefone, queimou os livros, rasgou as cartas e  deu o cão.
Finalmente, era chegado o dia decisivo, o dia tão intensamente desejado. Era o momento de inspirar profundamente, suster a respiração o tempo suficiente para lhe percorrer o resto de pessoa que já era e, de um só fôlego, expirar violentamente, expulsando de si as memórias, os afectos, os beijos, as lágrimas, a esperança e a paixão acumulada durante toda a vida.
Enquanto ainda lhe restava alguma energia, abriu uma cova no jardim, enterrou todos os destroços de si e voltou a fechá-la. Entrou em casa, apagou as luzes e deitou-se na cama. À sua frente, uma noite inteira de chuva, uma noite inteira para desfrutar do prazer de, enfim, estar completamente vazio.
Na manhã seguinte, um raio de sol avivou a brancura de um lençol coberto de uma suave poeira. No centro, um coração que batia ainda, suavemente.
Lá fora, no jardim, no monte de terra revolvida, via-se um pequeno e frágil caule verde claro.



Sem comentários:

Enviar um comentário