DAVID
Tinha o olhar profundo da mãe e a voz doce do pai. Chamava-se David e morava numa casa amarela, numa pequena cidade costeira. Sempre fora conhecido como excêntrico, bizarro no comportamento e estranho nos modos. Andava quase sempre sozinho, mas nunca parecia infeliz ou aborrecido. Falava imenso, mas a maioria das pessoas não chegava a perceber o que dizia… na verdade, falava mais consigo próprio do que com os outros. Dizia-se que era capaz de actos prodigiosos, mas nunca ninguém assistiu a nenhum deles. Mas sabia-se que era capaz de falar com as gaivotas, contar-lhes histórias e era, de facto, um regalo vê-lo sentado na areia, com dezenas de aves à volta, silenciosas e atentas às suas palavras. Também se dizia que era capaz de negociar com o vento e com a chuva, acalmando-os nos seus acessos de fúria invernal e que cantava canções de amor para as árvores em flor que, assim apaixonadas, davam à luz frutos doces e deliciosos.
David tinha muitos sonhos, queria fazer muitas coisas, ir à lua, deitar-se numa nuvem, caminhar sobre o mar… mas só fazia o que lhe apetecia e quando lhe apetecia. E ninguém ousava contrariá-lo porque, na verdade, todos estavam convencidos que, naquele rapaz de 18 anos de olhar profundo e voz doce, havia um dedo do diabo.
Certa manhã, David subiu com determinação ao cimo de um penhasco debruçado sobre o mar e aproximou-se da berma, arrastando-se lentamente até ficar apenas com metade dos pés na terra; verificou com satisfação que o vento não tinha faltado ao combinado, sentindo o corpo ondular, para a frente e para trás. Flectiu ligeiramente as pernas, encheu o peito de ar e saltou.
No dia seguinte, os meios de comunicação social informaram que o corpo de um jovem fora encontrado no mar, falando-se de queda acidental, especulando-se com a hipótese de suicídio. Tudo isto com imensas entrevistas a vizinhos e conhecidos, que asseguravam que se tratava de um excelente rapaz, embora um bocado amalucado.
Ninguém se lembrou, entretanto, de que ele talvez só quisesse voar.
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